sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Compulsão

Portuga dedicou as últimas horas para corrigir as barbaridades portuguesísticas das redações de um concurso público. No meio da tarde, balbuciou algo incompreensível, o que fez Margarete perguntar:
– Que foi, Portuga? Tá precisando de alguma coisa?
– Na verdade, cara Margarete, meus olhos estão cansados, mas, por outro lado, até me divirto com essas redações. Melhor rir para não chorar dessas criaturas que falam português, mas escrevem como índio. Embora os índios se esforcem bem mais atualmente para aprender português, que nem é a língua materna deles. Veja só...
– Ah, mas eu também já tô meia cansada! Ô, vida difícil!
– Tem certeza? Bom, se você está meia cansada, imagine que você foi fatiada ao meio. Sobraram duas metades. Uma delas está cansada e a outra não. Agora... se você quis dizer que está um pouco cansada, essa circunstância de intensidade se chama advérbio. Como o advérbio é invariável, o certo é dizer “meio”, e não “meia”.
– Que horror! Não entendi nada desse tal de adverbo, só deu pra entender a coisa da metade.
– Ah, sim, na verdade essa palavra vem o latim “ad”, que significa “junto”. Então, é muito fácil – Portuga levanta-se da cadeira e gesticula aproximando as mãos ao explicar –, a circunstância está junto ao verbo, entende? Ó, pense na sua frase “eu também já estou meio cansada”, temos um verbo ali, sabe qual é?
– Não faço a mínima ideia... – Responde a faxineira, voltando a mergulhar o pano no balde com detergente perfumado.
– É o verbo estar! Eu estou! E o que vem depois? O advérbio, que indica a intensidade, o quão cansada você está! Você poderia “estar” muito cansada, mais ou menos cansada, um pouco cansada... Olha que legal! Nós desmembramos a sua frase! É muito simples, é racional – sem retorno da mulher, ele senta-se novamente para fazer aquilo que só ele parecia entender.
Em algumas redações, o preenchimento do número mínimo de linhas nem sempre estava correto, em outras, a ideia estava boa, de acordo com a proposta da redação, porém, geralmente, com mais de 20 erros. Erros variados de concordância, de pontuação, de acentuação, de ortografia... Portuga, definitivamente, não compreendia como um candidato a professor podia ter uma escrita pior que a de candidatos para, por exemplo, Veterinária. Em certo momento, sentiu pena, pois apareceu um bom texto, com soluções importantes, mas com erros bizarros, falando em “menas” violência, citando “os direitos dos cidadões”. Portuga virou-se para comentar com Raissa, a supervisora:
– Imagine um professor escrevendo no quadro, para o Ensino Fundamental, “cidadões” em vez de cidadãos, “menas bagunça, pessoal!” em vez de menos bagunça... Olhe isto aqui: “crimes odiondos” em vez de hediondos... E “estrupo” em vez de estupro! Uau, essa pessoa se puxou!
Seus colegas de setor costumavam rir dos seus comentários, mas também cometiam tais erros e nem entendiam onde estava o erro. Mas Portuga precisava desabafar. Sim, para esses possíveis professores de Ensino Fundamental, o seu diagnóstico era fundamental também – dependeria de Portuga o futuro de muitos que estavam por trás daqueles escritos; alguns ilegíveis, outros incompletos, como quem traz pensamentos carregados dentro da caneta. A tinta acaba e a frase é interrompida...
“E aí, você não percebeu que já terminou o horário de expediente Portuga?”, piscou a mensagem do chat interno da empresa. O letrado não se segura e aproveita a chance de alfinetar Airton: “Não sabia que haviam apelidado ‘expediente’ com o meu nome, querido colega. Da próxima vez, lembre-se da vírgula do vocativo! O certo seria: “Você não percebeu que já terminou o horário de expediente, Portuga?”.
Pronto, rebateu dessa forma a mensagem, sentindo que estava fazendo um bem para o colega. “Engraçadinho. Você não perde uma.”, digitou Airton, com medo de errar algum ponto, afinal, todos sabiam da sabedoria linguística de Portuga. Quando tinham alguma dúvida de como escrever algo, recorriam ao letrado.
Desligou o computador. Estava escuro lá fora, o dia se foi e precisava chegar em casa para escrever no seu blog. Decidira não ser professor, pelo baixo salário e pelo desgaste que é lidar com os alunos. Ao chegar em casa, o telefone tocou. Ele atendeu sua mãe com a impaciência de costume:
 – Alô.
– Alô? Filho?
– Sim, mãe, eu moro com mais alguém?
– Ai, meu filho, credo, fazem horas que tô tentando falar contigo...
– Mãe, o verbo fazer, no sentido de tempo decorrido, é impessoal. Invariável. A gente diz “faz horas”.
– Ah, sim, isso mesmo, Zequinha, foi sem querer. Por que chegou tão tarde?
– Trabalho, trânsito, mercado etc, etc, etc.
– Hmm, bem resumido. Mas parece que você tá chateado, aconteceu alguma coisa?
– Não, mãe, eu só tô esperando pra ver o que você tanto queria falar. Cheguei agora, mal deu pra largar as chaves.
– Ai, que mau humor! Não era nada, só queria que você lembrasse de que eu tô viva, só isso.
– Isso eu lembro. Você é que esquece tudo o que eu lhe ensino. O verbo lembrar, quando tem preposição “de”, significa lembrar-se de algo, o certo seria você dizer ou “só queria que você ‘se’ lembrasse ‘de’ que eu tô viva” ou “só queria que você lembrasse que eu tô viva”, sem a preposição.
José Portuga de repente ouviu um grunhido do outro lado da linha e, em seguida, apenas o sinal de ligação perdida. Ela nunca havia feito isso. Sua mãe sempre gostou de escutar as regras, mesmo não entendendo e não sabendo diferenciar uma da outra. Seu filho continuava tentando tirar todas as vírgulas entre sujeito e verbo, entre verbo e seu complemento, entre sujeito e predicado, bem como arrumando intercalações que deveriam ter vírgulas. Ele sabia que as pessoas não gostavam de estudar as regras de português, sabia que não gostavam de ouvi-las de sua boca também; sabia que o que interessava a todos era apenas roubar cinco minutinhos da sua sabedoria a fim de não perder tempo pesquisando. E só. Mas sua irritante mãe havia se irritado com todo esse letramento compulsório.
Uma mensagem chegou em seu celular. Ele visualizou um “oi”. A frase seguinte dizia: “tem cinco minutos”. Dessa forma, Portuga suspirou e disse para si: “Malditas redes sociais. Enquanto essa frase não tiver um ponto de interrogação, não preciso responder.”.



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