Portuga dedicou as
últimas horas para corrigir as barbaridades portuguesísticas das redações de um
concurso público. No meio da tarde, balbuciou algo incompreensível, o que fez
Margarete perguntar:
– Que foi, Portuga? Tá
precisando de alguma coisa?
– Na verdade, cara
Margarete, meus olhos estão cansados, mas, por outro lado, até me divirto com
essas redações. Melhor rir para não chorar dessas criaturas que falam
português, mas escrevem como índio. Embora os índios se esforcem bem mais
atualmente para aprender português, que nem é a língua materna deles. Veja
só...
– Ah, mas eu também já tô
meia cansada! Ô, vida difícil!
– Tem certeza? Bom, se
você está meia cansada, imagine que você foi fatiada ao meio. Sobraram duas
metades. Uma delas está cansada e a outra não. Agora... se você quis dizer que
está um pouco cansada, essa circunstância de intensidade se chama advérbio. Como
o advérbio é invariável, o certo é dizer “meio”, e não “meia”.
– Que horror! Não entendi
nada desse tal de adverbo, só deu pra entender a coisa da metade.
– Ah, sim, na verdade
essa palavra vem o latim “ad”, que significa “junto”. Então, é muito fácil –
Portuga levanta-se da cadeira e gesticula aproximando as mãos ao explicar –, a
circunstância está junto ao verbo, entende? Ó, pense na sua frase “eu também já
estou meio cansada”, temos um verbo ali, sabe qual é?
– Não faço a mínima
ideia... – Responde a faxineira, voltando a mergulhar o pano no balde com
detergente perfumado.
– É o verbo estar! Eu
estou! E o que vem depois? O advérbio, que indica a intensidade, o quão cansada
você está! Você poderia “estar” muito cansada, mais ou menos cansada, um pouco
cansada... Olha que legal! Nós desmembramos a sua frase! É muito simples, é racional
– sem retorno da mulher, ele senta-se novamente para fazer aquilo que só ele
parecia entender.
Em algumas redações, o
preenchimento do número mínimo de linhas nem sempre estava correto, em outras,
a ideia estava boa, de acordo com a proposta da redação, porém, geralmente, com
mais de 20 erros. Erros variados de concordância, de pontuação, de acentuação, de
ortografia... Portuga, definitivamente, não compreendia como um candidato a
professor podia ter uma escrita pior que a de candidatos para, por exemplo,
Veterinária. Em certo momento, sentiu pena, pois apareceu um bom texto, com
soluções importantes, mas com erros bizarros, falando em “menas” violência, citando
“os direitos dos cidadões”. Portuga virou-se para comentar com Raissa, a supervisora:
– Imagine um professor
escrevendo no quadro, para o Ensino Fundamental, “cidadões” em vez de cidadãos,
“menas bagunça, pessoal!” em vez de menos bagunça... Olhe isto aqui: “crimes
odiondos” em vez de hediondos... E “estrupo” em vez de estupro! Uau, essa pessoa
se puxou!
Seus colegas de setor
costumavam rir dos seus comentários, mas também cometiam tais erros e nem
entendiam onde estava o erro. Mas Portuga precisava desabafar. Sim, para esses
possíveis professores de Ensino Fundamental, o seu diagnóstico era fundamental
também – dependeria de Portuga o futuro de muitos que estavam por trás daqueles
escritos; alguns ilegíveis, outros incompletos, como quem traz pensamentos
carregados dentro da caneta. A tinta acaba e a frase é interrompida...
“E aí, você não percebeu
que já terminou o horário de expediente Portuga?”, piscou a mensagem do chat
interno da empresa. O letrado não se segura e aproveita a chance de alfinetar Airton:
“Não sabia que haviam apelidado ‘expediente’ com o meu nome, querido colega. Da
próxima vez, lembre-se da vírgula do vocativo! O certo seria: “Você não percebeu
que já terminou o horário de expediente, Portuga?”.
Pronto, rebateu dessa
forma a mensagem, sentindo que estava fazendo um bem para o colega.
“Engraçadinho. Você não perde uma.”, digitou Airton, com medo de errar algum
ponto, afinal, todos sabiam da sabedoria linguística de Portuga. Quando tinham
alguma dúvida de como escrever algo, recorriam ao letrado.
Desligou o computador. Estava
escuro lá fora, o dia se foi e precisava chegar em casa para escrever no seu
blog. Decidira não ser professor, pelo baixo salário e pelo desgaste que é
lidar com os alunos. Ao chegar em casa, o telefone tocou. Ele atendeu sua mãe
com a impaciência de costume:
– Alô.
– Alô? Filho?
– Sim, mãe, eu moro com
mais alguém?
– Ai, meu filho, credo,
fazem horas que tô tentando falar contigo...
– Mãe, o verbo fazer, no
sentido de tempo decorrido, é impessoal. Invariável. A gente diz “faz horas”.
– Ah, sim, isso mesmo,
Zequinha, foi sem querer. Por que chegou tão tarde?
– Trabalho, trânsito,
mercado etc, etc, etc.
– Hmm, bem resumido. Mas
parece que você tá chateado, aconteceu alguma coisa?
– Não, mãe, eu só tô
esperando pra ver o que você tanto queria falar. Cheguei agora, mal deu pra
largar as chaves.
– Ai, que mau humor! Não
era nada, só queria que você lembrasse de que eu tô viva, só isso.
– Isso eu lembro. Você é
que esquece tudo o que eu lhe ensino. O verbo lembrar, quando tem preposição
“de”, significa lembrar-se de algo, o certo seria você dizer ou “só queria que
você ‘se’ lembrasse ‘de’ que eu tô viva” ou “só queria que você lembrasse que
eu tô viva”, sem a preposição.
José Portuga de repente
ouviu um grunhido do outro lado da linha e, em seguida, apenas o sinal de
ligação perdida. Ela nunca havia feito isso. Sua mãe sempre gostou de escutar
as regras, mesmo não entendendo e não sabendo diferenciar uma da outra. Seu
filho continuava tentando tirar todas as vírgulas entre sujeito e verbo, entre
verbo e seu complemento, entre sujeito e predicado, bem como arrumando
intercalações que deveriam ter vírgulas. Ele sabia que as pessoas não gostavam
de estudar as regras de português, sabia que não gostavam de ouvi-las de sua
boca também; sabia que o que interessava a todos era apenas roubar cinco
minutinhos da sua sabedoria a fim de não perder tempo pesquisando. E só. Mas
sua irritante mãe havia se irritado com todo esse letramento compulsório.
Uma mensagem chegou em
seu celular. Ele visualizou um “oi”. A frase seguinte dizia: “tem cinco
minutos”. Dessa forma, Portuga suspirou e disse para si: “Malditas redes
sociais. Enquanto essa frase não tiver um ponto de interrogação, não preciso
responder.”.